sábado, 24 de maio de 2008

Dilúvio

A casa era pouco conhecida por todos. Três nunca tinham estado ali, as outras duas uma única vez. Tudo era muito novo para os visitantes. O novo, nessa ocasião, não tinha o costumeiro brilho da expectativa, e sim do medo. Apesar de ser dia, a casa clamava por trevas. Era possível sentir a estranha aura que era emanada daquela construção. Não sei bem o motivo, mas acho que fui o único a sentir tal coisa.

Instalamo-nos na residência com certa pressa; pressa para usar o banheiro, pressa para comer, pressa para viver, pressa para morrer. Todos ocupavam suas mentes com os fúteis assuntos mundanos. É tão difícil assim perceber o quanto nos preocupamos com assuntos tão efêmeros? Só eu vagava pelo território novo com olhares furtivos e receosos, temendo ser surpreendido por algo desconhecido.

Meus olhos alcançaram o que nós chamamos de quintal. Lá pude ver dois cachorros ansiosos por usar suas afiadas mandíbulas. Para a minha sorte, e a de todos, eles estavam acorrentados. Acorrentava-se assim, não só o castigado corpo das criaturas, mas também todos os seus desejos e anseios. É bem fácil lidar com os animais já que a lei da natureza corre nas suas veias a satisfazer a vontade de vida. Para eles há apenas uma verdade, diferente das múltiplas “verdades” humanas. Precisava ganhar a confiança dos dois. Sim, precisava! Tinha que ser bem vindo naquele local! Precisava sentir-me melhor.

Fui à cozinha conseguir um pouco de água para as duas criaturas. As torneiras teimavam em não derramar qualquer gota. Vi-me obrigado a retirar a água presente no aparelho sanitário. Percebi, ao voltar para onde os cães estavam, que o primeiro era bem mais dócil e menos orgulhoso do que o outro. Bebeu toda a água avidamente, como se sua vida dependesse disso. Eu o fitava com um sincero olhar e um sorriso crescente. Ofereci água ao outro e recebi um olhar feroz e latidos estrondosos. Não podemos agradar a todos. Saí a procurar o banheiro para tomar um demorado banho.

Qual não foi meu espanto quando soube que nós estávamos sem água?! Desesperadamente comecei a procurar o mecanismo que ligaria o motor e a conexão da água. Em vão. Meu corpo pedia que fosse agraciado pelo maior de todos os presentes divinos. Vi que minhas buscas dentro da casa de nada estavam adiantando. Resolvi procurar do lado de fora.

Explorei o já conhecido terreno onde habitavam meu amigo e meu rival. Nada. Só restava a parte oeste da casa. Iria constatar se havia algo a ser encontrado por lá. As horas se passavam sem ao menos perceber que elas se esvaíam. As outras pessoas da casa curiosamente achavam outros afazeres para se ocuparem; uns trabalhavam na complexidade da armação de uma rede, outro ocupava-se na arte do beijo e outra na difícil missão de interpretar as informações da tv. Eu na busca incessante pela água.

Ao me aproximar do oeste da residência, senti o ar mais pesado e olhei para os céus. Estes enegreciam-se com uma velocidade assustadora, como respondendo a necessidade de algum ritual macabro que precisava da obscuridade essencial da noite. Lentas passadas eram dadas por mim. Meus pés faziam amizade com a rubra areia como a adiantar seu papel no futuro. Seguia por um estreito e único caminho. Avistei uma portinha branca na parede lateral mais a frente. Pronto! Tinha que ser ali! Entraria naquela pequena caverna e a água jorraria por toda a casa, purificando a tudo e a todos!

Dei mais alguns passos e percebi que o ar ficava ainda mais pesado. Estava difícil respirar, precisava fazê-lo com cautela. Ao pôr minha mão direita na pequena porta, que se apresentava como um portal de redenção, finalmente a surpresa que me aguardava mostrou-se. Um grande volume negro apressou-se em minha direção em um pulo monstruoso. As trevas forneciam toda a energia vital desse ser que, de branco, só tinha as afiadas unhas e os enormes dentes. Era o Cerberus terrestre. Apenas eu, com um grito sufocado, pude ver as duas cabeças adicionais que habitavam aquele guardião dos portões do inferno. Seu enorme peso desabou sobre mim como se não houvesse nada mais pesado nesse efêmero mundo. Desabei sobre a porta e ele desatou a cumprir seu trabalho de besta fera. Procurava, em meio às garras e mordidas, pela salvadora válvula da água. Meu olhar turvo e a vertiginosa dor não me deixavam explorar o lugar como gostaria. Via apenas crânios, ossos e só então, um forte cheiro de morte se apoderou da minha existência.

Não conseguia ouvir os gritos dos que habitavam, naquele final de semana, a estranha casa. Não percebi o esforço deles para distrair o sedento Cerberus e me tirar da mortal caverna. Não notei quando eles me arrastaram por entre a, graças a mim, mais ainda vermelha areia. Minha audição e visão falharam, concomitante, ao não sentirem o choro e o desespero dos habitantes da casa. Mas todos os meus sentidos e a pouca força vital que ainda me restava brilharam ante a vermelha manivela que se encontrava escondida pela vegetação local. Estendi o braço e, com muito esforço, girei a manivela que traria a vida para aquela casa.

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