quinta-feira, 19 de junho de 2008

Ônibus

Ah! Aquele dia não foi mais uma simples jogada no grande jogo da vida. Eu, que sempre achei que os dados estavam incondicionalmente ao meu lado, percebi que por mais que joguemos esse imprevisível jogo de tabuleiro, não entendemos a lógica escondida por trás dos peões, das cartas, dos dados... Nem ao menos sabemos se há vencedores ou perdedores: apenas jogamos.

É notório como a individualidade humana, de uns tempos pra cá, vem vertiginosamente crescendo sob a máscara da tecnologia. Nós, “seres humanos”, buscamos cada vez mais isolamento para uma melhor compreensão do “nosso” mundo. Vã ilusão. Essa tentativa frustrada tem como resultante uma maior angústia e mais dúvidas.

Engraçado... Os melhores momentos são caracterizados pelos sujeitos que participam dos mesmos. Quais são os seus melhores momentos? Quem partilhou destes eufóricos instantes de felicidade com você? Perceba como os outros são importantes na sua vida. Você é um mísero grão de areia da praia universal onde todos os grãos juntos formam uma unidade única, de difícil classificação. Entretanto, as classificações e compreensões são desnecessárias quando algo acima disto está em jogo: a vida.

Estava em um ônibus que costumeiramente utilizo para retornar ao meu “home, sweet home” quando um duplo seis jaz sobre o tabuleiro. Permaneço antes da catraca e, como o usual, passaria apenas quando estivesse próximo de descer não fosse a presença de um negro peão a se mover. Trajava uma roupa branca, manchada pelas mazelas urbanas; um sapato furado que não podia ser reposto por um novo; um chapéu pequeno que se adequava perfeitamente a sua cabeça, a única perfeição de sua vida. A barba a ser feita, talvez fosse uma despesa a menos. Mas o que me fez passar logo pela catraca foi o fétido odor que ele exalava: uma mistura de álcool e sujeira. A maioria das janelas estavam fechadas aumentando ainda mais aquele insuportável odor. Ultrapasso o divisor de mundos do ônibus.

Ah! Eu sabia que a jogada dele interferiria na minha mas não tanto! Ao atravessar a roleta, ele solta um grito em minha direção com as seguintes palavras: “paga aí minha passagem!”. Não sei o que teriam feito em meu lugar. O que fiz foi apenas olhar o indivíduo e lhe responder com indiferença. Uma indiferença que para ele devia ser bem conhecida e, por isso, era um punhal a entrar em sua barriga. Mas o endereço do punhal não podia ser órgãos vitais. Ele ainda tinha muito o que agüentar.

Ao sentar-me ele rebate minha indiferença com um “você vai ver!”. Aquelas três palavras entraram em meu ser como se tivessem lâminas afiadas e sedentas por sangue em seu conteúdo. Percebi que tinha cometido um erro. Por que não lhe pagar a passagem e receber um agradecimento ao invés de uma ameaça? Minha avareza falou mais alto e minha indiferença tomou a decisão por mim.

Toda a viagem o receio se apossou do meu ser. Via, nas gotas que caíam do céu, lágrimas dos anjos ante ao que estava prestes a acontecer. Lágrimas rubras como o ódio do mundo. Como o ódio daquele que não podia passar e se sentar com aqueles que pagaram a tarifa do ônibus. E qual era o destino de todo esse ódio? Se não àquele que lhe negou uma chance, dentre tantas que foram negadas. Preparava-me para, a qualquer momento, receber uma bala carregada, não com pólvora, e sim com fúria. Esta que, por ele, era tratada como parte de sua alimentação diária.

Comecei a me perguntar: Meu Deus, eu? Por quê?! Súplicas desesperadas que não conseguiam ver a fácil realidade. Eu sou apenas mais um peão no jogo da vida. A qualquer momento posso sair do jogo e dar lugar a outro jogador. Que pretensão a nossa de querer jogar a vida toda! Deixemos outros jogadores entrarem!

A discussão com o trocador só acentuava a próxima jogada que já se passava em minha mente. Tudo acabaria ali. Com todas aquelas pessoas testemunhando minha saída. Com todas aquelas pessoas e com ninguém. Aceitaria a próxima jogada. Seja ela qual fosse.

A viagem foi tomando o seu fim e eu continuava vivo. Não sabia o que acontecia no interior do ônibus; sabia, apenas, que muitas cabeças curiosas olhavam atentas aos movimentos do peão negro. E, para minha surpresa, minha parada chegara. Levantei-me e percebi que aquele seria o melhor momento para ele jogar. Poucos passos foram dados. Passos quase maquinais. Não os dava conscientemente. Ao chegar à porta, onde iria desembarcar, ousei olhar uma última vez para aquele que detinha o meu destino nas mãos surradas pelo mundo. Ele olhou para mim e pude ver em seus olhos que esperaria mais um pouco para realizar sua jogada.

Desço e percebo que a chuva abrandou. Parece que alguém enxuga as lágrimas dos anjos. Mas, quem enxugará as minhas?

Felipe Dutra Cartaxo

5 comentários:

Nandu disse...

Nossa,quanta viagem para andar de buzão...hehehe
ficou legal..


passa lá no meu blog tb!
abs

Anônimo disse...

Sua atitude foi normal. Como vc mesmo disse, não foi a primeira e nem será a última que alguém agirá com ele com a mesma indiferença.

O que mais falou alto em vc foi o instinto de sobrevivencia. Não apensar de sua vida, mas de seu modo de viver. É mto complicado encararmos a face suja e amarrotada do mundo que nos cerca.

Sim, vc poderia pagar a passagem, vc poderia com isso ser alvo de críticas das outras pessoas do lado de cá da roleta que quer afastar a mazelas com medo de se contaminarem. Mas, como vc disse, vc é apenas um peão. E quem nasceu para peão, nunca será uma rainha.

Mas não te critico, eu tbm sou peão.

O blog desse peão aqui é: http://lasanhadeabobrinha.blogspot.com/

N.Lym disse...

Quede tu mânchu???????=]

dança dos erros disse...

esse texto me comove muito, sempre que leio!

e felipe, vc faz falta no ch viu meu fiii (:

Anônimo disse...

aeeeeeee.. enfim um blog!!! não precisa mais me passar os arquivos e taaal.. publica aqui :D